terça-feira, 31 de janeiro de 2017

Para lá do silêncio, para lá da luz - Parte I

Surdocegos

Feche os olhos, tape os ouvidos, imagine a sua vida assim para sempre! Apesar da perda das cores e dos sons, a vida continua a fazer sentido, continua a haver lugar à felicidade, ao crescimento, ao futuro. É isso que se ensina todos os dias no colégio António Aurélio da Costa Ferreira, em Lisboa, o único centro para surdocegos em Portugal.

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Ser cego é uma pessoa não ver. Ser surdo é não ouvir. Ser surdo-cego é muito mais do que a soma das duas deficiências... Esta é a primeira lição, uma espécie de lei que se aprende ao passar da porta do Colégio.

Ser surdocego não significa necessariamente não possuir os dois sentidos: há quem veja um pouco e nada ouça, quem apanhe alguns sons e tenha ainda resíduos das cores e dos movimentos, quem tenha nascido sem nenhum dos dois sentidos E quem sentiu aos poucos a perda a marcar-lhe a vida, hora a hora, minuto a minuto. O mais terrível foi quem, de um momento para o outro, passou a ver só silêncio e escuridão. Grande parte das histórias de surdocegos é isso mesmo, a perda sucessiva dos sentidos: visão, audição... e quem sabe, paladar e tato.

Quando se nasce surdocego não se sabe que o mundo é diferente. Não se sabe que existem cores, números, pode-se até nunca descobrir a "noção do eu". É o ato de aprender que nos distingue dos outros, há que aproveitar cada momento para aprender e preparar as competências para o que a seguir virá. Para um surdocego há metas que se impõem, como a aprendizagem do Braille, a linguagem gestual... O difícil será sempre aprender a viver com as perdas e esquecer a pergunta: "porquê eu?".

O Colégio

No interior há um pátio quadrado, a cada um dos cantos existem quatro diferentes casas: amarela, verde, vermelha e azul. Cada uma corresponde a uma sala diferente, a uma equipe de educadores, a um trabalho específico, e claro, a um grupo muito particular de usuários, porque alguns já não são crianças.

Todos os espaços estão marcados por texturas, o relevo do chão permite-nos saber onde estamos mesmo com os olhos fechados. A pequena subida no piso anuncia uma porta. O quadrado em pedra picada no chão informa: escadas. O frio do corrimão guia-nos no descer e subir dos degraus. As texturas e as cores das portas dizem se se trata de um quarto, uma casa de banho... Cada quarto tem o nome e o símbolo de quem lá dorme. No jardim, os caminhos de tijolos estão entrincheirados entre o piso de pedrinhas. Assim, todos dominam o espaço.

Movimentos e tarefas

De repente, uma patinete aproxima-se, um menino de 14 anos acelera a grande velocidade. Pressente-nos, afasta-se, e continua. Não ouve, apenas vê sombras muito reduzidas do que tem à sua volta. Ignora-nos mas sente-nos. Umas voltas mais tarde, a patinete pára, o Ricardo senta-se num banco abanando um pequeno lápis sem ponta em frente dos olhos. Fica assim quase uma hora, vendo o movimento, ou o que resta dele.

São oito e meia da manhã. As crianças depois de se vestirem e de se arranjarem descem dos quartos do primeiro andar. Sobre a mesa da sala há um sem número de embalagens de cereais para o café da manhã. Há ainda leite, chá, suco, iogurtes, pão, bolo e doces. E há que escolher. É destas pequenas escolhas que se definem as personalidades de cada um quando o vocabulário é tão reduzido. Cada opção, cada escolha funciona como forma de marcar o espaço de um indivíduo.

A seguir, vêm as atividades, basta ver o calendário, alguém tem por missão de lavar e arrumar a louça na pequena cozinha de apoio da sala amarela. Durante o dia a lista de trabalhos e atividades muda consoante a sala e a criança em questão.

Tudo o que é feito é anotado numa espécie de diário - os cadernos - a anotação pode ser através de um desenho, um sinal, ou frases escritas pela criança ou por um adulto se esta ainda não domina as escritas. Quase todas as crianças têm tarefas, responsabilidades, aprendizagens e jogos. Há a culinária, os passeios, os quebra-cabeças pedagógicos, a ginástica, a piscina, a hipoterapia, o recreio, o atelier de artes plásticas.

Fonte: BengalaLegal
Foto: CED António Aurélio da Costa Ferreira

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